A polícia, o bem e o mal
J. R. GUZZO*
REVISTA
VEJA
01.04.2014
Pode ser uma coisa que muita
gente acha desagradável ouvir, e por isso é melhor dizer logo, para não gastar o
tempo do leitor com prosa sem recheio. E o seguinte: os brasileiros fariam um
grande favor a si mesmos se tomassem a decisão de ficar, com o máximo de
clareza e na frente de todo mundo, a favor da polícia. Isso mesmo: a favor da
polícia, e da ideia de que cabe exclusivamente a ela, numa democracia que
queira continuar viva, o direito de usar a força bruta para manter a ordem, cumprir a lei e proteger
o cidadão. Tem, também, a obrigação legal de fazer tudo isso. Algum problema? É exatamente assim em todos os regimes
democráticos. Eis aí, na verdade, uma afirmação evidente em si mesma; pode ser entendida sem a menor
dificuldade após um minuto de reflexão. Mas estamos no Brasil, e no Brasil
o que parece ser um círculo, por
exemplo, é muitas vezes considerado um triângulo, ou um quadrado, ou qualquer
outra coisa que não seja o diabo do
círculo.
No momento, justamente,
passamos por um desses surtos de tumulto mental. Segundo o entendimento de
boa parte daquilo que se considera o
"Brasil pensante", "civilizado" ou "moderno",
nosso grande problema não é o crime, mas
a polícia. Parece bem esquisito pensar uma coisa dessas, num país com mais de
50 000 assassinatos por ano e índices de
criminalidade que estão entre os piores do mundo. Onde esses pensadores estão vendo
o problema de que tanto falam? Vai saber. Os verdadeiros mistérios desse mundo
não são as coisas invisíveis, e sim as que se podem ver
muito bem. No caso, o que se pode ver com a clareza do meio-dia é a fé
automática de boas almas e mentes num
mandamento que ouvem desde crianças: o criminoso brasileiro é sempre
"vítima das desigualdades sociais", e o policial está errado, por princípio, quando usa a
força contra ele. Seu dever, como agente do Estado, seria tratar os
bandidos como cidadãos que precisam de
ajuda, para que tenham oportunidade de entender por que não deveriam matar,
roubar, estuprar e assim por diante.
Será que esse jeito de pensar é alguma tara que nos sobrou do regime militar, quando
polícia e liberdade eram coisas opostas? De novo: não se sabe.
Praticamente todos os dias
há exemplos claros desse curto-circuito geral na capacidade de separar o certo do
errado. O cidadão é assaltado, brutalizado, ferido — e no dia seguinte lê, ouve
ou vê mais uma reportagem denunciando a
polícia por algum erro, real ou imaginário. Ainda há pouco, o país teve
oportunidade de testemunhar políticos,
intelectuais e "celebridades" em geral, com a colaboração
maciça da mídia, colocando a polícia no banco dos réus por reprimir bandos de marginais que vão para a
rua decididos, treinados e equipados para destruir. Segundo essas excelentes
cabeças, a polícia cria um "clima de violência" e de
"provocação" que "força os ativistas" a se defenderem "previamente". Para isso, veem-se
obrigados a incendiar bancas de jornal, destruir carros, quebrar vitrines de
loja e por aí afora. Esse tipo de
julgamento vai se tornando mais e mais aceitável no Brasil de hoje. Deve ser
maior do que se pensa o número de
pessoas que não querem ter a tranquilidade de sua fé perturbada por fatos ou
por conhecimentos: além disso, cabeças
em que não há ideias são sempre as mais resistentes a deixar alguma ideia
entrar nelas. Quanto à imprensa, rádio e
TV, acreditem: o que mais gostam de fazer é falar as mesmas coisas, pois se
sentem mais seguros quando um repete o
outro e todos atiram nos mesmos alvos. Alguém já viu, por exemplo, algum
jornalista arrasando o técnico do
Olaria?
Não há sete lados nesse
debate. Só há dois, um que está a favor da lei e o outro que está contra — e aí
o cidadão precisa dizer qual dos dois
ele realmente apoia. O primeiro é a polícia. O segundo é o que leva o crime
para a rua. A única pergunta relevante,
num país que tem uma Constituição em vigor, é: de que lado você está? Não vale
dizer "depende", ou declarar-se
a favor da ordem, desde que a tropa se comporte com altos níveis de civilidade,
seja muito bem-educada, fale inglês e
não bata nunca em ninguém, nem cause nenhum incômodo físico a quem esteja
jogando coquetéis molotov na sua cara,
ou sacando armas contra ela. A questão real é apoiar hoje a polícia brasileira
que existe hoje — não dá para chamar a
polícia da Dinamarca, por exemplo, para substituir a nossa, ou tirar a PM da
rua e só chamá-la de volta daqui a
alguns anos, quando estiver suficientemente treinada, preparada e capacitada a
ser infalível. É mais do que sabido que
a polícia do Brasil tem todos os vícios registrados no dicionário, de A a Z.
Mas, da mesma maneira como não é possível fechar todos os hospitais públicos
que funcionam mal. e só reabri-los quando forem uma maravilha, temos de conviver com a realidade
que está aí. É indispensável transformá-la, mas não dá para exigir, já, uma
corporação armada que precise ter virtudes superiores às nossas.
A polícia, por piores que
sejam as condutas individuais dos seus agentes e seus níveis de competência, é uma
peça essencial para manter a democracia no Brasil e impedir a tirania daqueles
que só admitem as próprias razões. É a polícia, na verdade, o que a população
brasileira tem hoje de mais concreto na garantia de seus direitos. Alguém pode
citar alguma força mais eficaz para impedir que o Congresso, o STF e o próprio
Palácio do Planalto sejam invadidos, metidos a saque e incendiados? A PM está
do lado do bem — goste-se ou não disso. No mundo das realidades, é ela a principal defesa que o cidadão tem para
proteger sua vida. sua integridade física, sua propriedade, sua liberdade de ir
e vir, o direito à palavra e tudo o mais
que a lei lhe assegura. A autoridade policial já erra o suficiente quando falha
ao cumprir quaisquer dessas tarefas. Não faz nexo criticá-la nas ocasiões em
que acerta.
Não serve a nenhum propósito útil, igualmente,
dar conforto ao inimigo — o que nossa elite pensante, como dito anteriormente,
faz o tempo todo. O inimigo não vai deixar de ser seu inimigo; você não ganhará
sua admiração, nem será deixado em paz. É um desafio à lógica, neste sentido,
achar que delinquentes teriam a licença de armar-se para assegurar seu direito
de "legítima defesa" contra a repressão policial. A lei brasileira,
com todas as letras, diz que só a polícia tem o direito de portar armas, e de
utilizá-las no combate ao crime e na defesa do cidadão — salvo em casos
excepcionais, que exigem licença específica. Dura lex sed lex. claro. Mas não é
só uma questão legal. Trata-se de simples sensatez. No caso dos atos de
protesto — qual o propósito de levar para a rua mochilas com bombas
incendiárias, estiletes, barras de ferro e outros artefatos desenhados
unicamente para machucar? Por que alguém precisaria de qualquer dessas coisas
para expressar suas opiniões em praça pública?
O Brasil vem se acostumando
nos últimos anos à ideia doente de que mostrar simpatia diante da delinquência e
hostilidade diante da polícia é uma questão de princípio — uma atitude
socialmente avançada e politicamente progressista. Quem não pensa assim é visto
como um homem das cavernas, extremista e inimigo da democracia. Mas é o
contrário: opor-se ao crime e apoiar a polícia é ficar a favor da liberdade.
Está na moda denunciar, com apoio da caixa de amplificação da imprensa, delitos
como a "pregação do ódio", "apologia do crime" ou
"incentivo ao racismo". Esse mesmo tribunal, entretanto, aplaude como
uma forma superior de cultura popular os rappers que pregam abertamente, em
suas músicas, o assassinato de policiais. Há alguma coisa muito errada nisso
aí. Está na hora de deixar claro: é falso acusar çle "histeria" e
outros pecados mortais quem não acredita, simplesmente, que no Brasil de hoje
existe algum assaltante que rouba e mata porque está com fome ou tem de
sustentar sua família; o que há é gente que quer satisfazer todos os seus
desejos sem ter de trabalhar ou de respeitar o direito alheio. Em Cuba,
regime-modelo para nosso governo, são chamados de sociopatas e enterrados na
cadeia mais próxima, sem que a "sociedade" seja chamada a
"debater" coisa nenhuma.
Deus não precisou da ajuda
dos brasileiros para criar o Brasil. Mas, como diria Santo Agostinho, só poderá
nos salvar se tiver o nosso consentimento.
*José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, diretor editorial do grupo EXAME e colunista das revistas EXAME e VEJA, integrando ainda o Conselho Editorial da Abril.